Surrealismo no papel: A arte e a identidade de Haru Octopi
- Revista Cabanos
- 19 de abr.
- 11 min de leitura
Por Dalton Maneschy e Ícaro Zacarias

Ilustrador e escritor nas horas vagas, Haru Octopi é um homem trans não-conformista de 21 anos. Ele recebeu a equipe da Cabanos em uma sorveteria na Batista Campos, onde apareceu vestido em um estilo alternativo, com roupas pretas e uma maquiagem gótica, acompanhado de Tsui, um amigo. "Te vejo em três dias" (Sentidos, 2024), seu primeiro livro, foi um dos escolhidos para fazer parte da programação da banca da Fundação Cultural do Pará na 27° Feira Pan-Amazônica do Livro e das Multivozes, em agosto deste ano. O livro, que mistura erotismo com degradação moral, traz o ponto de vista de Osga, um torturador que é servido por um submisso especial, mas que, ironicamente, serve ao Estado totalitário que controla a vida de todos, e a narração de Max, melhor amigo de infância, amante e vítima de Osga. Ao ser questionado sobre como descreveria o próprio livro para alguém que nunca ouviu falar dele, Haru respondeu: "Não é um romance, pelo amor de Deus, não tratem como um romance. Isso não é um romance. É uma distopia surrealista com comédia surrealista que foca num protagonista gay que tem um caso com um homem gay também, mas isso não faz do livro um romance". Nesta entrevista, Haru expõe um pouco de sua trajetória como um escritor trans não-conformista e amazônida.
Dalton — Eu queria dizer que li o livro inteiro e que genuinamente fiquei encantado por ele. Então eu queria saber, dos personagens que tu fizeste pro livro, qual é o teu favorito?
Haru — O principal submisso, acabei de esquecer o número dele agora…
Dalton — O Neo, submisso 4?
Haru — Ele! Eu queria ter dado muito mais atenção pra ele do que eu realmente dei, mas eu não cheguei a dar tanta atenção quanto ele merece. Inclusive, houve uma pequena discussão interna minha, se eu queria deixar o livro maior, ou se eu queria escrever outro pra complementar esse, porque tem muitos personagens que eu sinto que não aprofundei o suficiente. E o Neo, ele tem tanto por trás dele… Na verdade, ele era um OC (personagem original em português) que eu já tinha muito antes desse livro ser escrito, mas eu só meti ele ali porque eu não tava muito sóbrio na hora (risos).
Ícaro — Você participou da feira do livro este ano, né? Você pode descrever pra gente como foi a experiência?
Haru — Olha, foi bem estressante pra falar a verdade. Eu tava uma pilha de nervos, assim, extremamente estressado, porque eu sou uma pessoa que odeia essa coisa da atenção em mim e… a escrita, em si, nunca foi uma coisa que eu planejei fazer a sério. Eu faço e vendo alguns scripts pra comics e animações, mas não é a parte principal do meu trabalho, então, quando virou uma parada muito física, eu pensei: "eita, é algo". Foi meio estressante pra mim, porque não tinha como eu me esconder atrás de uma tela, que é o que geralmente me faz confortável. Eu não sou fã de interação humana, sabe? Mas eu entendi que eu precisava estar lá por vários motivos, foi ética, pressão, muita pressão… um autor trans não-conformista, vários amigos meus olharam pra mim e falaram: “Cara, é muito raro ter isso, seria maneiro”. E eu fiquei: “É, bixa” (risos).

Dalton — Então a pressão veio dos teus amigos para estar lá?
Haru — Minha mãe também. Ela é uma escritora, uma ótima escritora, eu admiro muito ela, mas ela me deu um leve chutão pra eu chegar lá (risos), e eu disse: “Ok mãe, você tem razão, pior que nessa você tem razão.”
Dalton — Você falou que sua mãe é escritora. Ela teve algum envolvimento na produção do seu livro?
Haru — A minha mãe, ela foi… sinto muito, eu esqueci do termo, quando você tem uma pessoa que corrige seu livro no processo da edição?
Dalton — Revisora?
Haru — Acho que é isso, revisora… a minha mãe é uma das revisoras, ela corrigiu meu português péssimo (risos)… claro que a escrita dela tem muita influência, porque eu escuto a escrita dela desde que eu sou criança. Minha mãe tem várias coisa publicadas e ela escreve desde sempre, todo santo dia e, quando eu era criança, ela já usava aquele negócio do Word, que uma IA lê o que você escreve em voz alta, então eu passo dias e dias e dias escutando o mesmo texto, várias vezes, então tem uma influência do texto dela, porque era impossível não ter, sabe? Com certeza ela teve esse papel.
Ícaro — A sua mãe foi uma inspiração para o Te Vejo em Três Dias?
Haru — Teve uma influência da minha mãe, mas a inspiração de Te Vejo em Três Dias, na verdade, é um sonho que eu tive. Eu sonhei com isso, aí depois eu escrevi um rascunho do livro, depois eu ajeitei o rascunho. Então a inspiração principal é esse sonho, porque eu sonhei com a história inteira numa noite só, numa porrada. É por isso que o livro tem esse passo também, que você lê e fica desorientado às vezes, é por causa do surrealismo, que remete ao sonho, porque, no fim das contas, ele é um sonho e continua sendo um sonho no contexto da história, principalmente porque a narração alterna entre o Max e o Osga, então continua sendo um sonho entre os dois, mais ou menos.
Ícaro — Então seu livro foi escrito às três porradas, digamos assim?
Haru — Foram três porradas, na verdade… foram quatro. Foi o sonho, aí depois foi um rascunho levemente alcoolizado. Depois foi largar e dizer: “nunca mais vou tocar nisso de qualquer forma”. E depois disso foi: “eu não tenho dinheiro, meu Deus amado, o que que eu vou fazer? Bota no edital!”. Então eu consertei e botei no edital (risos). Depois veio a outra porrada, que foi a revisão, que eu tive que revisar todos os erros. Passei pra minha revisora Lorenna, que corrigiu de novo, passei pra minha mãe, ela revisou de novo, e aí foi.
Ícaro — Foi em um edital da Fundação Cultural que você colocou o livro?
Haru — Foi… putz que coisa feia, agora eu não lembro o nome do edital… Foi um dos editais da (lei) Paulo Gustavo. Que coisa feia eu não conseguir lembrar o nome pra falar (risos), mas foi da Fundação Cultural, da linha ali da Paulo Gustavo…
Dalton — Você já tinha tido experiência escrevendo livros? Ou só script?
Haru — Eu tenho, mas eu não publiquei nada. Esse foi meu primeiro publicado. Eu estou pensando em publicar outro, considerando… Só que eu não sei ainda, não faço ideia, porque a escrita não é exatamente um hobby, mas digamos que é o hobby, sabe, é uma coisa que me toma muito esforço pra fazer. Então tive, mas nada que tenha chegado ao ponto que esse livro chegou.
Dalton — Agora eu fiquei curioso. Tu disseste que estás vendo alguma coisa, então tu tens alguma ideia do que publicar em seguida?
Haru — Cara, tem duas coisas que eu pensei em escrever… só que eu ainda não decidi se eu vou seguir com isso, ou não. A primeira coisa é uma que me foi pedida algumas vezes, que seria o POV (ponto de vista em português) do Max nessa história inteira. As pessoas queriam muito livro pelo POV do Max, porque todo mundo que leu até agora, digo, a maioria, não posso falar no total, mas quem leu até agora meio que chegou à mesma conclusão que eu esperava que chegasse, tipo: “Essa parada aqui não é real, bicho! O que tá acontecendo aqui? Isso aqui é real? Não é real? O que o Max tá vendo? Isso aqui é o que o Osga tá vendo? Mas e o Max?”. Então as pessoas queriam muito o POV do Max, e eu sei qual é o ponto de vista dele, então eu tô tipo: “Será que eu faço?”, sabe? E a segunda coisa é uma história um tantinho mais pé no chão, que eu tenho ela meio que encaminhada… porque eu tenho um certo público no Twitter, e em outras redes sociais, não é um público enorme, mas é um público ok, e eu posto coisas sobre OCs lá, personagens originais e, desses personagens originais, têm uma delas em específico que tem uma história que é um triângulo amoroso entre uma lésbica, uma mulher bissexual e um homem bissexual e a mulher lésbica e homem bissexual tão brigando pela bissexual. É basicamente isso e que depois disso vira uma história de assassinato, mistério e é uma onda.

Ícaro — Como você se descobriu trans?
Haru — Sempre foi algo. Minha família é uma mistura esquisita entre muito conservadores e liberais até demais. O lado liberal sempre me deixou entrar em contato com a comunidade LGBTQIA+ no geral, enquanto o lado conservador botava essa culpa pelos outros terem deixado eu ter esse contato com a comunidade. Então, eu sempre meio que soube, sempre foi algo que tava ali, sabe, tipo: “eu não sou mulher, disso eu sei”, mas teve culpa e, até eu conseguir deixar sair… porque a mudança física “não existe” pra mim, porque eu sou um homem não-conformista, então eu não performo o gênero masculino do modo que a sociedade espera que eu faça. Então é isso, sempre soube, mas até que eu pudesse me mostrar e construir essa confiança pra dizer pro mundo: “oiii, eu sou um homem trans, eu sou viado!” foi um caminho, um bem chato, mas chegou lá e é isso que importa.
Ícaro — E ser um homem trans não-conformista, você consegue explicar, mais ou menos, como seria isso?
Haru — Olha, eu me sinto homem, ok? Se você olha pra mim e pergunta “o que você é?”, eu vou virar e responder: “Eu sou um homem”. Homem queer, é isso que eu sou, um homem queer. Mas, em questão de aparência, eu me coloco dessa forma, como vocês tão vendo agora, muito feminino, gosto muito de maquiagem, porque esse é o jeito que eu me sinto confortável em expressar o meu eu, é o que eu sou, e eu demorei bastante pra chegar aqui, mas cheguei e é mais ou menos isso: performar a masculinidade que você quer performar e não o que a sociedade espera de você, porque, pensa num homem cis, seja gay ou bissexual, quando ele se veste em drag, ou usa roupas femininas e maquiagem no dia a dia, ele é aplaudido por isso, porque ele é corajoso, então por que seria diferente comigo? Por quê eu sou um homem trans? Tem muito essa pressão pro homem trans performar uma masculinidade mais padrão, aquela homem macho pra caralho, mas isso não é o que eu sou e eu não vou mentir.
Ícaro — Você enfrentou alguma dificuldade durante a produção do seu livro, por ser trans?
Haru — No processo da produção do meu livro eu não enfrentei dificuldades por ser uma pessoa trans. Os meus dois personagens são homens cis e eu não sei te dizer porque eu tomei essa decisão, mas eu diria que eles foram mais um conforto pra mim, como uma forma de reafirmar meu genêro, eu não sei explicar, foi estranho, eu não tava cem por cento sóbrio quando escrevi (risos).
Ícaro — Você tem alguma relação ou conhece algum outro artista trans aqui da Amazônia?
Haru — Conheço, na verdade, acabei de conhecer o Oliver Duarte e, pelo pouco que a gente conversou, ele é um cara incrível, mas não tem nada publicado ainda. No entanto, ele me mandou alguns textos dele e eu achei, assim, incríveis e, infelizmente, é só com ele que eu mantenho contato recentemente que eu consiga me lembrar. Agora, sabe, artistas trans aqui no Pará, eu conheço alguns muito pontuais…
Dalton — Você tem algum artista trans favorito, que recomendaria pra pessoas que querem conhecer mais artistas dessa comunidade? No geral, não preso à Amazônia.
Haru — Só porque vocês falaram, eu esqueci agora (risos). Olha… pode ser um pouco de favoritismo da minha parte, mas é porque meu marido, Lan Barros, ele é um homem trans não-conformista também, daqui do Pará, e ele é um ótimo artista, multifacetado, então se a gente fosse falar de um artista incrível e multifacetado eu falaria dele, eu não faço a menor ideia do porque isso fugiu da minha cabeça agora (risos).
Dalton — Você é casado?
Haru — Sim… sim e não. Meu marido, tecnicamente, é meu melhor amigo. Nós não somos formalmente casados. Formalmente, talvez um dia, no entanto, emocionalmente, ele é meu marido e é isso… Se perguntarem, somos casados (risos).
Dalton — Como autor, eu fiquei curioso: você gostou do resultado final de Te Vejo em Três dias?
Haru — Você, como autor, deve entender: é uma situação. Tem muita coisa nesse livro que eu olho e fico: “filha da puta, pra quê? Pra que eu fui escrever isso?”. Tem uma cena, que é a cena que todo mundo comenta quando fala comigo que é a maldita cena da da floresta! Eu estava muito… levemente alcoolizado. Eu não sei de onde essa cena saiu, não sei como ela aconteceu, eu não sei. As pessoas até tentaram me perguntar qual era o significado, mas eu não sei! São gays, eles são viados (risos), eu não sei o que está acontecendo ali. Essa cena é um arrependimento, é uma benção e uma maldição. No Te Vejo em Três Dias, tudo é uma benção e uma maldição, é impressionante.
Ícaro — Qual foi sua parte favorita na hora de escrever o livro?
Haru — Terminar. Sinceramente, essa é uma coisa que as pessoas ficam meio assim quando eu falo, mas a minha parte favorita foi nunca mais ter que tocar no livro… Sabe quando você grava um áudio seu, você escuta depois e fica: “Acho que eu não gosto muito da minha voz, não…”? Escrever, pra mim, é exatamente isso, então se alguém perguntar depois, não fui eu que escrevi (risos).
Dalton — Você falou e eu lembrei, eu li a frase do final: “Para todos os gays, não confiem no Osga” e fiquei muito curioso, qual é a sua interpretação como autor?
Haru — Essa frase, pra mim, é o final do livro, porque é pra deixar muito claro que, aquele final feliz não aconteceu, porque aquele “final feliz” não fez muito sentido se você pensar muito bem no livro. Foi até uma coisa que as pessoas comentaram comigo, porque não aconteceu o final ali, essa frase significa algo meio: “Então gente, deixa eu avisar, não confiem em tudo que vocês lêem na internet” (risos). É basicamente isso, só que no contexto do livro.
Ícaro — Você tem o hábito de ler livros de outros autores? Qual é o tipo de livro que você gosta de ler?
Haru — Então, meu gosto é variado, no entanto, não leio com tanta frequência com eu devia, vou ser muito honesto. Eu sou absolutamente alucinado por história, eu sou neurodivergente e eu tenho um hiperfoco gigantesco em história, então tudo que tem a ver com história eu estou lendo, tudo que tem a ver com o crime real eu tô lendo. No momento, meu livro favorito… aliás, no momento não, há mais de 5 anos, o meu livro favorito é Relatos de um Gato Viajante. [...] Eu gosto muito de comédia, mas tem que ter algo ácido a respeito da comédia, sabe? É isso.

Ícaro — Você falou que é neurodivergente. Isso impactou de alguma forma no processo de criação do livro?
Haru — Ser neurodivergente impacta em tudo da sua vida geral, em tudo e… impactou muito naquela coisa de: “Nossa cheguei nesse ponto e travei” ou eu trabalhei até demais. É difícil, como uma pessoa neurodivergente, estabelecer os limites do seu corpo, até onde ele consegue ir e até onde não consegue, então eu sempre trabalhava de menos ou eu trabalhava de mais. Isso atrasou um pouco, sabe? E acabou que esse livro foi entregue horas antes do edital fechar, se eu não me engano, uma hora antes de dar meia-noite. Foi uma situação. Realmente impactou sim.
Dalton — Você disse que trabalha principalmente como ilustrador. Que tipos de trabalhos de ilustração você já fez?
Haru — Eu faço ilustrações pra pessoas físicas e também empresas. No geral, eu prefiro manter meu trabalho um pouco mais anônimo, porque… é uma coisa engraçada sobre os trabalhos que eu fiz até agora, eu trabalhei muito mais com empresas indies (independentes). Todas acabaram ou tendo polêmicas muito grandes, e eu tive que me desviar da empresa e dizer assim: “Não, vocês não combinam com os meus ideais, não vou poder trabalhar com vocês.”; ou elas faliram, meus amigos falam que é uma maldição minha (risos), por isso eu prefiro manter os trabalhos que eu fiz, apesar de alguns já serem conhecidos, eu prefiro manter mais anônimos. No entanto, alguns estão no meu portfólio, que está disponível em todas as minhas redes sociais, então eu prefiro não passar pela vergonha de falar alto. Quando eu trabalho com empresas, normalmente eu faço design de personagens, storyboard e revisão de storyboard.
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