Praça Dalcídio Jurandir, na rua São Miguel entre Alcindo Cacela e 9 de Janeiro.
Nesse espaço tão frequentado por muitos moradores de Belém, crescia um jovem. O rapper e morador do bairro da Cremação, Bruno Cardoso, conhecido por seu nome artístico Jovem Duende, faz história ao organizar um evento que retrata a realidade marginalizada das comunidades periféricas da capital, a partir de suas rimas carregadas de mensagem. À noite, todos param para observar a movimentação. O instrumental se inicia e a plateia fica em silêncio, à espera do que vem a seguir. Quem passa próximo da praça, tem os ouvidos voltados às vozes que ecoam pelo lugar.
A chamada Batalha do Crematório reúne, todas as quartas-feiras, às 18 horas, artistas periféricos em batalhas de rima e apresentações culturais. O evento surgiu com a ideia de propagar a resistência dos que sofrem todos os dias por conta das desigualdades sociais, a resistência das periferias. Duende é mais um entre muitos que buscam por uma vida melhor.
Não é de hoje que vemos casos de violência envolvendo moradores periféricos.

Apesar das críticas e das desvalorizações violentas, as periferias belenenses seguem a cada dia se reinventando e lutando por seus direitos. A cultura possui um lugar importante nisso. Seja na música, na dança, na moda ou no entretenimento, ela sempre esteve presente na vida de muitas pessoas que se identificam enquanto “periféricas”.
Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), aproximadamente 52% dos moradores de Belém residem em áreas de periferia. Cerca de 73,3% da população é negra, o que permite identificar fatores que contribuem para a desvalorização dessa parcela tão grande da sociedade. A diversidade do Pará, em especial a de Belém, só foi possível graças ao enorme percurso de muitas gerações que lutam por seus espaços dentro e fora dos grandes centros urbanos. Porém, houve um marco que se destacou entre os demais, que mudaria toda a noção que se tinha de cultura nos momentos que se seguiriam: Os anos 2000.
Essa década foi representada por uma grande disrupção em diversos aspectos da vida periférica. A existência de aparelhos tecnológicos mais sofisticados no território brasileiro, como o CD, o DVD, os videogames, as câmeras digitais, os players de áudio e a própria internet, facilitou a modernização dos meios de comunicação na disseminação da cultura no ambiente urbano. O cenário contribuiu para uma ruptura nessas regiões, pois as periferias passaram por um processo de forte transformação no consumo cultural vindo de outras partes do mundo.
“Na minha adolescência, eu tive um contato muito forte com a internet. Foi quando barateou os computadores no Brasil entre 2005 a 2008. Me lembro que, em 2006, eu ganhei um computador pra estudar. Eu tive acesso à rede social e conheci pessoas de diferentes partes do país. Aquilo me abriu um leque muito grande. É importante conhecer pessoas que possuem experiências parecidas com as nossas. Eu tive a oportunidade de começar a compor os meus raps e postar eles na internet. Muitas das informações que eu tenho hoje eu aprendi na internet: de quem eu sou, sobre o que é ‘negritude’, sobre o que é ‘racismo’. Eu aprendi muito através das músicas também”, diz o poeta negro e também morador da Cremação Allan Miranda Conceição, conhecido como Pelé do Manifesto.

A consolidação dos meios tecnológicos serviu de ponte para uma conexão social que manteve vivo o sentimento de memória por parte da juventude dos anos 2000 nos dias atuais.
Tornou-se mais evidente a questão do autoreconhecimento dentro das periferias de Belém enquanto parte de uma sociedade e de algo maior, proporcionado por algo muito importante: a representatividade.
“Geralmente o que chegava pra gente, de fora e até mesmo dentro do mercado nacional, eram artistas que não se pareciam com a gente. Eram artistas do pop, mas artistas brancos, que tinham cabelos, traços, estilos de vestir e linguagens diferentes. Então, quando nós nos deparamos com artistas que se parecem conosco, dá um ‘start’ na mente. Nos filmes e nas séries, a gente sempre era retratado pela mídia como o morto, o preso, o bandido ou o malvado. E quando a gente acaba enxergando pessoas que tem a nossa cor trabalhando com arte ou sendo protagonistas de alguma coisa, meio que traz essa reflexão. O rap chega em mim e mostra isso. […] Fico muito feliz em ser essa representatividade, porque eu sei o quanto isso é importante pro pensamento de um jovem”, acrescenta Pelé.
EMPODERAMENTO

Britney Spears, Lady Gaga e Avril Lavigne foram alguns dos grandes nomes de sucesso da década. No entanto, a cultura musical negra foi, sem dúvidas, uma das maiores responsáveis pela popularização das tendências daquela época na atualidade. A cantora Beyoncé, nascida em Houston, nos Estados Unidos, é um dos grandes nomes da música americana. Os clipes Crazy in Love e Single Ladies, lançados em 2009, são dois dos hits mais bem sucedidos da artista por colocarem em pauta questões sobre o empoderamento feminino e a autoaceitação de uma forma nunca antes vista: pelo olhar de uma mulher negra do subúrbio. Com o lançamento de Diva, Beyoncé foi responsável por popularizar o termo pelo mundo inteiro, principalmente entre as mulheres e a comunidade LGBTQIAPN+, demonstrando uma transformação na linguagem das periferias, e na própria sociedade. A imagem criativa da artista foi, sem dúvidas, extraordinária.
Além das produções da Queen B, os videoclipes de Rihanna, como Umbrella e Diamonds, também dominaram o mundo. A artista caribenha teve um grande impacto na indústria, dominando vários estilos musicais - como rock, pelo pop e até mesmo reggae. Como compositora, Rihanna abriu espaço em suas letras para relatar os problemas sofridos pelas mulheres e pela comunidade preta nas relações românticas. A ideia de representatividade criada por ela foi considerada um marco no feminismo negro, por marcar a vida de muitas mulheres que se identificavam com suas letras.

Alice Araújo, organizadora do projeto Periferia Tá na Moda, evento que dissemina a moda periférica produzida pelos próprios moradores de Belém reside no bairro da Terra Firme. A jovem conta um pouco do seu olhar sobre a cultura pop na vida diária dos moradores de Belém.
“Eu nasci nos anos 2000. Tem voltado à moda, agora, esse período. Então, acho que isso tem afetado mais a nossa atualidade. Mas, o que mais me pega é o estilo de se vestir e algumas músicas, como as da Beyoncé e da Rihanna. As divas pop, né? Acho que a gente consegue ver a influência disso nas periferias com as festas de aparelhagem, com a Gaby Amarantos, com a Leona, e com a marca Pit Bull” O ‘babado’ era usar uma roupinha coladinha, um jeans apertado e muito glitter. Tudo isso tem chegado porque a gente tá fazendo essa retomada”, afirma.
CULTURA POPULAR
Nas festas de aparelhagem, o tecnobrega surgia e ganhava força dentro dessas comunidades, unindo multidões de pessoas. A mistura de gêneros do Brasil e do Caribe – o carimbó, o forró, o calipso e o merengue – com a música eletrônica e o lado emocional do brega trazia mais caras à identidade periférica amazônida. Gaby Amarantos, cantora negra nascida no bairro do Jurunas, ao lado das paraenses Viviane Batidão e Joelma foram três das responsáveis pela popularização desse novo gênero nas terras da Amazônia. A aparelhagem Crocodilo surgiu no início dos anos 2000, quando ainda era pequena e tocava somente nas festas do Jurunas. Depois do imenso sucesso musical Faz a Boquinha do Animal, o projeto começou a crescer, disseminando o orgulho de se ter nascido nas periferias e alcançando novos rumos.
O jeito de se vestir de Belém, desde essa época, sempre esteve relacionado com os gostos de cada indivíduo. O costume de usar o “estilo boleiro”, composto por uma bermuda jeans, uma camisa de time e um par de chuteiras era comum. Acessórios como correntes douradas com nomes gravados também eram febre entre os mais jovens. Os rapazes usavam sandálias Kenner, e outras marcas como a Cobra D’água e a Maresia, e as meninas calçavam Melissa. A juventude negra passou a buscar elementos de outras culturas para formar o seu próprio estilo. Os óculos em degradê, cabelos platinados e meias altas eram a sensação do momento, além das jaquetas biker, calças camufladas, joias nos dedos e o conjunto de top e calça bag, que demonstravam a potência cultural nos bairros periféricos. Foi durante esse período, também, que as indústrias de beleza começaram a dar mais atenção à população preta. Linhas de produtos pra cabelos cacheados e crespos começaram a ser amplamente comercializados.
“Eu acho a moda paraense muito maneira de se ver. A moda tá presente em tudo. Muitos símbolos estão sendo criados. A moda representa o nosso corpo, o nosso espaço. E pelo Periferia tá na Moda, que é um evento que eu acompanho, é algo surpreendente e bom de se pensar. Eu vi muitos artistas e jovens periféricos como protagonistas. Talvez esse seja um dos caminhos pra tirar a nossa sociedade do mundo das criminalidade. Não podemos esconder que na periferia tem crime. Mas ela não é só isso. A Amazônia não é só mato como dizem. Ela tem ciência, cultura e história”, opina José Otávio, estudante quilombola de Jornalismo da Universidade Federal do Pará.
A globalização trouxe consigo, além do chamado “cyber-tempo”, esse resgate através das redes sociais. Dia após dia, somos bombardeados por conteúdos carregados de muitas possibilidades que tiveram origem na negritude. Os cabelos, as maquiagens, as roupas, as músicas consumidas. Tudo isso passou pela essência do que é ser “negro”. Artistas brasileiras como Anitta, Ludmilla, Pabllo Vittar, Iza e Liniker, muito ouvidas em Belém, carregaram seu sucesso porque tiveram grandes inspirações negras no passado, sejam elas dentro ou fora de seu país de origem.
Porém, ver toda essa potência cultural, que marcou eras e eras, sendo desvalorizada para dar lugar à discriminação nos leva a pensar no quanto ainda precisamos evoluir. Apesar do longo percurso trilhado pelos rappers, pelos cantores pop, pelos amantes de trap e hip-hop, e pela juventude, há muito o que se caminhar. O racismo ainda é uma realidade constante na vida dos moradores das periferias. Por isso, buscar entender de onde e como se chegou até aqui é uma das maneiras mais dignas de se combater essa injustiça, responsável, há muitos anos, pelo fim de tantas vidas inocentes. Abraçar nossas raízes é escolha nossa, é o nosso dever. E reconhecer as memórias e a potência das periferias faz parte disso.
Por Álvaro Amaral e Ana Victória
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